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Cicatrizes abertas no palco

Cicatrizes abertas no palco

Um mês depois da perda de Zé Celso, a classe teatral sofreu outro baque, com a morte do diretor Aderbal Freire-Filho, aos 82 anos. Ele havia sofrido, havia três anos, um acidente vascular cerebral, que o debilitou desde então.

Em sua carreira, Freire-Filho se notabilizou por reforçar a natureza literária do teatro, adaptando grandes romances para os palcos. “O Púcaro Búlgaro”, de Campos Carvalho, de 2006, e “Moby Dick”, de Herman Melville, encenado três anos depois, foram exemplos do que o diretor chamava de romance-em-cena.

Discípulo de Brecht, Freire-Filho se dedicou, nos anos 1980, a encenar uma geração de autores brasileiros, como Leilah Assumpção, Oduvaldo Vianna Filho e Aldomar Conrado. Como diretor, deixou a marca do seu rigor, sendo contra o espontaneísmo em cena. Ele marcava as posições no palco como se fosse um coreógrafo, na contramão do teatro contemporâneo.

Outro personagem notável que saiu de cena foi o Teatro Aliança Francesa, que persistiu no centro de São Paulo por 60 anos. Após uma última temporada com bons espetáculos do Grupo Tapa, que montava seus trabalhos lá desde 1986, a instituição gestora decidiu vender o prédio histórico que foi um ponto de resistência na ditadura militar.

A sala recebeu peças históricas, como a estreia, em 1969, de “Fala Baixo Senão Eu Grito”, de Leilah Assumpção, estrelando Marília Pêra, e “Um Grito Parado no Ar”, de Gianfrancesco Guarnieri, com Othon Bastos.

Mas o ano não se resumiu às mortes. “Traidor”, novo texto de Gerald Thomas, mostrou que o teatro é capaz de capturar o espírito do tempo. Na peça, Marco Nanini encarnou um homem à beira da loucura, que reflete sobre temáticas contemporâneas, como as guerras e a mudança climática. A produção é determinada pelo absurdo do personagem, esperando a chegada de uma tropa, que nunca chega.

Já no circuito comercial, “A Herança”, peça de cinco horas e meia escrita pelo americano Matthew Lopez, foi sucesso de público e crítica. Com Bruno Fagundes e Reynaldo Gianecchini no elenco, 11 atores traçaram um panorama da história da comunidade gay de Nova York, nos Estados Unidos, tematizando o horror durante a epidemia de Aids.

“Tom na Fazenda”, com Armando Babaioff, que teve nova temporada pelo país ao longo do ano, se sagrou como um fenômeno, passando a marca de 300 apresentações e dando continuidade ao sucesso que teve desde que estreou em 2016.

Em paralelo, a premiada montagem de “As Bruxas de Salém” pelos Satyros, em São Paulo, foi surpreendida nesta semana com a perda dos direitos autorais da peça escrita por Arthur Miller. A aquisião feita por Marcel Giubilei frustrou os fundadores da companhia, Ivam Cabral e Rodolfo García-Vázquez, quando tentaram estender as apresentações.

Notável ainda a presença crescente de trabalhos solo, que preencheram as salas do circuito. Foi o caso de adaptações literárias como “Escute as Feras”, com Maria Manoella dando corpo ao livro da antropóloga Nastassja Martin; “Vista Chinesa”, com Julia Lund estrelando uma versão da obra de Tatiana Salem Levy; além do universo de Guimarães Rosa, que inspirou Vera Zimmermann em “Diadorim” e uma trilogia com o ator Gilson de Barros.

Na dança, a São Paulo Companhia de Dança estreou o espetáculo “Le Chant du Rossignol”, uma criação do alemão Marco Goecke para o poema sinfônico de mesmo nome, composto por Igor Stravinsky, em 1917.

Na ópera, o ano foi marcado por uma polêmica envolvendo a montagem de “O Guarani”, no Theatro Municipal de São Paulo. Como mostrou a Folha de S.Paulo, a obra de Carlos Gomes teve uma leitura decolonial, seguindo a perspectiva da diretora Cibele Forjaz.

Segundo ela, as montagens da ópera reproduziam uma imagem preconceituosa e estereotipada dos indígenas. Por isso, a ópera teve intervenções da Orquestra e do Coro Guarani, e Peri e Ceci, cada um deles ganhou um duplo, que vagava no palco. Estudiosos da ópera criticaram a montagem, que pouco tinha a ver com as aspirações do compositor. E não só. A montagem de Forjaz mudou a obra de Carlos Gomes, excluindo o seu balé.

Osvaldo Colarusso, maestro que nos anos 1980 esteve à frente do Coro Lírico Municipal, classificou a atitude como “burrice”. “É um modismo tentar dar uma roupagem politicamente correta para a obra. Certamente Carlos Gomes iria odiar”, disse ele.

Post original através de https://www.correiodamanha.com.br/cultura/teatro/2023/12/107893-cicatrizes-abertas-no-palco.html:

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