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Vestido de Noiva volta ao CCBB após turnê de sucesso pelo país

Vestido de Noiva volta ao CCBB após turnê de sucesso pelo país

Sangue e adultério. Uma morte suspeita. Duas mulheres, da mesma família, disputam o mesmo homem. As notícias tomam as manchetes dos jornais, em frases sensacionalistas e alarmantes. E o público não desgruda os olhos do palco. “Vestido de Noiva” foi encenada pela primeira vez há quase um século, em 1943. Decorridos 80 anos, a montagem do polonês Ziembinski para a peça que consagrou Nelson Rodrigues continua se constituindo como um paradigma. Ione de Medeiros não se intimidou com o desafio.

Em 2018, a renomada diretora teatral iniciou com o Grupo Oficcina Multimédia, que ela ajudou a fundar em 1977, os estudos sobre a obra de Nelson Rodrigues, que desembocou na apresentação de “Boca de Ouro”. “Vestido de Noiva”, que retorna ao CCBB após uma temporada de sucesso que percorreu Rio, São Paulo e Brasília, e fica em cartaz até o dia 5 de fevereiro, adicionou novos ingredientes à empreitada. A narrativa se passa em três dimensões psicológicas, que precisam encontrar o seu correspondente no plano da elaboração cênica: realidade, alucinação e memória.

“O público não precisa fazer esforço para entender, é um texto direto, coloquial, que gera grande identificação e atrai com uma história aparentemente comum, que vemos todos os dias nos jornais. O fato de o Nelson Rodrigues, com a sua competência de dramaturgo, tratar esses temas através do inconsciente é que traz a sofisticação e a novidade na maneira de contar a história. E isso é o teatro que faz”, constata Ione.

Enredo

Alaíde é atropelada por um veículo em alta velocidade. Na maca do hospital, sob a luz fria e asséptica da sala de cirurgia, recorda a briga com a irmã Lúcia, de quem seduziu indecorosamente o namorado Pedro. Em seus delírios, ela se depara com a prostituta Madame Clessi, assassinada por um namorado possessivo e enciumado.

“Como os clássicos da literatura e da dramaturgia, esse texto do Nelson Rodrigues permanece atual porque fala sobre as essências da natureza humana. Por exemplo, o desejo da mulher de encontrar um outro espaço que não seja somente o da família e do lar. A hipocrisia das famílias que priorizam as aparências e ignoram os problemas mais próximos e humanos de seus filhos. A necessidade da reconstrução de identidade de todo mundo. O ser humano precisa estar em constante movimento, procurando quem ele é, o que ele está fazendo. A peça toca em todas essas questões. Por isso, é atemporal”, sustenta a diretora.

O espírito de vanguarda está na gênese do Oficcina Multimédia, que sempre prezou pela intersecção de linguagens, em um movimento amplo que atualizava com um novo vigor os clássicos. “Cheguei a usar projetor de slide quando não tinha projetor de vídeo. Gosto dessa dimensão em que você amplia a imagem, a personagem, o cenário. É um uso da tecnologia que se encaixa na proposta do grupo”, destaca. No espetáculo anterior, “Boca de Ouro”, ela optou por uma abordagem intimista. Não foi o caso de “Vestido de Noiva”.

Caminhos

A dança, o texto, o vídeo, a multiplicidade de linguagens se integraram a uma sinopse fragmentada, que parte de uma narradora em estado de inconsciência. “Não há uma lógica que você acompanha cronologicamente, e a tecnologia foi fundamental para dar esse suporte narrativo e cênico”, afiança. Com um núcleo de dois atores que trabalham com ela há mais de duas décadas, Ione realizou a sua habitual peregrinação para formar o elenco de seis integrantes, que se revezam entre os papéis femininos e masculinos, outra tradição da companhia, em um saudável hibridismo.

“Assisto a muitos espetáculos, vou pela identificação e recebo indicações”, conta. Dois atores vieram de São João del Rei, e outro acabou de se formar pelo Teatro Universitário da UFMG. Camila Felix, atriz e dançarina com longa passagem pelo grupo Primeiro Ato, já a tinha conquistado em “Boca de Ouro”. “Todos têm seus projetos, a sua carreira, e, se não fosse pelo profissionalismo, pela compreensão e o desejo de estarmos juntos nessa montagem complexa, eu não teria conseguido montar esse espetáculo em três meses, com um elenco tão harmonioso”, agradece Ione.

Há 45 anos, ela deu o pontapé nessa caminhada teatral, com deleites e dissabores. “A maior conquista é a continuidade, é você montar uma peça de difícil realização como ‘Vestido de Noiva’, com um elenco ajustado, com energia para manter os ensaios e a coerência da pesquisa. É uma grande vitória poder continuar uma proposta iniciada nos anos 1970, da qual eu fiz parte da criação, e seguir na estrada durante todo esse tempo, com diversos espetáculos montados”, exalta.

Coragem

Ione é contemporânea de “Vestido de Noiva”. Nascida há 80 anos em Juiz de Fora, ela tem a sua história ligada de maneira sensível e inexorável ao teatro. Sob sua direção, o Oficcina Multimédia deu vazão a textos de García Lorca, Kafka, James Joyce, Gertrude Stein, dentre outros. Pianista de formação, ela sempre esteve imersa nesse ambiente da arte, se interessando também pelo cinema de Godard, Bergman e Buñuel. Como toda vida, a sua também teve que recolher pedras no caminho.

Ione hesita em usar a palavra “dolorida”, mas, depois, aquiesce. “Dolorido é você não ter o reconhecimento devido, do ponto de vista de uma política cultural que possa manter o grupo, o que exige muito de todos nós. Ficamos sujeitos a editais, por não ter ainda um suporte financeiro que garanta essa continuidade com mais tranquilidade”, informa. Nesse cenário, os envolvidos precisam se virar em outras funções para manter a pesquisa dramatúrgica em dia, sem realizar concessões no âmago dos projetos.

“Tem que ter coragem para trazer novas propostas para uma peça que estreou em 1943, e atualizar, em 2023, o sentido cenográfico de uma proposta de montagem que foi muito bem-sucedida na origem”, observa.

Essa coragem, evidentemente, não falta a Ione, uma mulher de teatro. “Temos que valorizar a inteligência e a cultura brasileira. Nelson Rodrigues é um autor muito querido pelo público porque fala das nossas urgências e afetividades”, arremata.

Serviço

O quê. Peça “Vestido de Noiva”, com o Grupo Oficcina Multimédia

Quando. Desta quinta (28) a 30 de dezembro, às 20h; e de 5 de janeiro a 5 de fevereiro; de sexta à segunda, às 20h

Onde. Centro Cultural Banco do Brasil (Praça da Liberdade, 450, Funcionários)

Quanto. De R$ 15 (meia) a R$ 30 (inteira), pelo site www.ccbb.com.br ou pela bilheteria do teatro

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Post original através de https://www.otempo.com.br/mobile/entretenimento/vestido-de-noiva-volta-ao-ccbb-apos-turne-de-sucesso-pelo-pais-1.3301511:

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