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Pedofilia vira filão editorial, tema de filme, peça de teatro e estimula debate público | Eu &

Pedofilia vira filão editorial, tema de filme, peça de teatro e estimula debate público | Eu &

Livro de Vanessa Springora trata da dominação sexual e moral a que foi submetida pelo escritor Gabriel Matzneff, ela com 14 anos, ele com 50 — Foto: Eric Fougere – Corbis/Corbis via Getty Images

Só na França. Em plena era do domínio das redes sociais, livros franceses vêm ultrapassando a categoria de best-seller e tornando-se fenômenos de sociedade ao provocarem um debate público sobre o incesto, a pedofilia e a indulgência de um certo meio intelectual, literário e midiático com a violência sexual contra crianças.

O assunto, transformado em filão editorial, foi desdobrado em filme, peças de teatro, programa de televisão e institucionalizado por meio de uma comissão independente que ouviu 30 mil depoimentos, constatou que 160 mil crianças por ano sofrem abuso e calculou em 9,7 bilhões de euros os gastos da sociedade por manter o assunto envolto num silêncio pesado.

Só na França livros desbancam as redes no debate público. Todo ano, em torno de 536,8 milhões de exemplares disputam a atenção dos leitores e dos críticos a cada “rentrée” literária, o período após as férias de verão, durante o qual são lançados entre 400 e 500 novos livros.

Em 2023, Neige Sinno se impôs como a revelação dessa temporada com o seu “Triste tigre”, uma mistura de autobiografia e ensaio sobre a violência sexual cometida contra ela pelo padrasto — Foto: Abaca Press/Domine Jerome/Abaca/Sipa USA/Newscom

Em 2023, Neige Sinno se impôs como a revelação dessa temporada com o seu “Triste tigre”, uma mistura de autobiografia e ensaio sobre a violência sexual cometida contra ela pelo padrasto. A partir da segunda semana nas livrarias, “Triste tigre” foi o livro mais vendido e acumulou prêmios — o Goncourt dos Jovens, o Femina 2023 e “O melhor do ano” do “Le Monde”.

Nele, Sinno continua a conversa iniciada pelo Me Too com as denúncias de violências sexuais, mas usa a literatura e a sua própria história para analisar a ambivalência da sociedade em relação ao incesto e ao violador. “O tabu é tornar pública a violência sexual, não o abuso”, escreve.

O triste tigre do título vem de um poema de William Blake, “Canções da inocência e da experiência” (1789), uma interrogação sem resposta sobre o mal. No texto de Sinno há vários tigres: o estuprador, o ódio dela, a mentira e o silêncio impostos. Contra todos os tigres, ela lança um grito de raiva, com o relato do pesadelo vivido nas sucessivas ondas de choque causadas pelo trauma.

Emmanuelle Béart participou de um documentário no qual revelou também ter sofrido abuso sexual — Foto: Photo by Scott Garfitt/Invision/AP

“Para mim, o mais interessante é entender a cabeça do estuprador. A vítima é mais fácil, todos conseguem se botar no lugar dela. Com o carrasco é mais difícil: o que faz um homem, sozinho com uma criança de sete anos, botar o pênis ereto em sua boca e, quando tudo termina, se vestir e cuidar das questões familiares”, pergunta-se Sinno, bem no início do primeiro capítulo.

Nascida numa família modesta, com pais hippies rurais, logo separados, ela tinha em torno de sete anos quando o novo companheiro da mãe começou a abusar dela pelos vários cantos da casa, inclusive na cama do casal, usada por ele para estuprá-la assim que a mãe saía para trabalhar.

“Com atos sexuais, ele me punia por minha indiferença em relação a ele”, escreve. Aconselhada por um amante que virou amigo, Sinno, junto com a mãe, denuncia o abusador. Ele é condenado a nove anos de prisão, cumpre cinco e imediatamente depois cria uma nova família, com mais três filhos e uma companheira bem parecida com a primeira mulher, mas 20 anos mais jovem.

Sinno conseguiu se reinventar: foi estudante brilhante, primeiro na França e depois nos Estados Unidos, e agora, aos 46, é uma escritora e professora no México, onde vive com o companheiro e a filha, de 10 anos, a quem já contou a sua história. A dor não passou e ela continua convivendo com o sentimento de injustiça. Achou consolo na literatura: levou 20 anos para conseguir o tom certo de “Triste tigre”. “Queria fazer beleza com o horror, não só horror”, escreve.

“Triste tigre” sucede a dois outros livros que mexeram com corações e mentes dos franceses: “O consentimento”, de Vanessa Springora, e “La familia grande”, de Camille Kouchner. O primeiro, lançado em 2020, vendeu 350 mil exemplares, foi traduzido em 30 países (no Brasil pela Verus, do Grupo Record), virou peça de teatro e, adaptado para o cinema, estava nas telas parisienses no fim de 2023.

É o depoimento de Springora sobre a dominação sexual e moral a que foi submetida pelo escritor Gabriel Matzneff, ela com 14 anos, ele com 50. O livro já levara a uma mudança radical no olhar da sociedade para a pedofilia.

Nos idos de 1980, Matzneff seduzia o meio literário de Saint-Germain-des-Prés, onde era visto como um homem culto, com espírito livre e ousadia para reivindicar sua atração por adolescentes, sem medo de chocar a burguesia. No programa literário mais famoso da televisão, apresentou um volume do seu diário “Meus amores decompostos”, em que relatava em detalhes seus romances com meninas de 14 ou 15 anos e sexo em Manila com filipinos de 11 e 12.

A relação de Vanessa Springora e Gabriel Matzneff era amplamente conhecida, mas o lançamento de “O consentimento” mudou a atmosfera lítero-boêmia e a presença do escritor passou a criar mal-estar entre seus pares. Ele estava com 83 anos e sua carreira entrou em declínio acelerado: o jornal “Le Monde” já suspendera a coluna assinada por Matzneff, a editora Gallimard cancelou o contrato para mais um livro e o último volume de seu diário vendeu menos de mil exemplares.

Já Springora tornou-se diretora editorial da Éditions Julliard e, aos 49 anos, ainda chorou quando viu sua história nas telas, conta uma amiga que prefere manter-se anônima.

A recepção ao filme foi considerada surpreendente: até o fim de novembro tinham sido vendidos 650 mil ingressos, resultado inesperado para um longa-metragem duro, sufocante, distante dos ingredientes comuns de sucessos cinematográficos.

O boca a boca digital levou às salas incontáveis grupos de meninas, de 15 a 20 anos, muitas vindas de bairros populares. “Elas transformaram a ida ao cinema num acontecimento íntimo, muitas se filmaram na entrada e na saída da sala escura. Antes, sorridentes, depois tinham o rosto petrificado, algumas com lágrimas escorrendo”, registra o jornal “Le Monde”. Estes filmetes, postados no TikTok, foram vistos por 65 milhões de pessoas.

A lei do silêncio fora quebrada.

Entre a publicação da obra de Springora e a chegada do filme às telas, um livro, de novo, criou um fenômeno social na França. Impulsionada pelas denúncias de incesto em “La familia grande”, de Camille Kouchner, levantou-se a segunda onda de denúncias de abuso sexual: o Me Too Incesto.

No livro, a jurista Kouchner acusa o padrasto de abusar do seu irmão gêmeo quando ambos eram adolescentes. O padrasto a que se refere é Olivier Duhamel, um homem poderoso e até então admirado. Constitucionalista, célebre comentarista político, presidente da Fundação Nacional de Ciências Sociais, professor emérito de Science Po, a universidade de onde saíram os últimos quatro presidentes da França.

Duhamel se demitiu de todos os cargos antes de o livro chegar às livrarias. Imediatamente depois, dezenas de milhares de mulheres e homens foram para as redes relatar as violências sofridas quando crianças, perpetradas por avôs, pais, primos, padrastos, irmãos.

A família grande, contada por Kouchner, era formada pelos filhos do ex-ministro Bernard Kouchner, um herói da esquerda, liderada pela mãe, Evelyne Pisier, e a tia Marie France, mulheres livres e de sucesso, uma como intelectual de esquerda renomada, a outra como atriz do cinema francês. Duhamel era considerado um padrasto bondoso para os filhos de Evelyne e, todos juntos, iam agregando companheiros, amigos e os filhos deles, refugiados da ditadura do Chile. “Eram a esquerda caviar”, escreve Kouchner.

Ao saber das visitas noturnas ao quarto do filho pré-adolescente, a mãe ficou do lado do marido e o grupo alegre se desfez. A elite intelectual parisiense sabia do segredo de família, mas a lei do silêncio prevaleceu até o lançamento do livro que convulsionou a sociedade francesa, fez o presidente Emmanuel Macron prometer que as crianças não ficariam desprotegidas e obrigou a mídia a deixar em segundo plano a pandemia de covid-19.

Pelas contas da comissão independente criada pelo governo logo depois da publicação de “La familia grande”, existem 5,5 milhões de vítimas de violência sexual vivendo na França.

O tema decididamente saiu das sombras. O livro emendou com a entrada em cartaz de “Le voyage dans l’Est” no Teatro Nacional de Estrasburgo, em setembro passado. Foi considerada pela crítica uma montagem magistral do romance — também premiado — de Christine Angot sobre o inferno do incesto vivido pela autora com seu pai. “Esta viagem dentro do horror me provocou algo de irreal, uma vertigem”, comentou a atriz Emmanuelle Béart ao assistir meses antes à leitura do texto no Palais des Arts, em Vanves.

A atriz francesa de 60 anos também acabara de ler “La familia grande” e, mexida com a narração e as memórias, tomou coragem para participar de um documentário havia três anos em preparação, no qual revela que também foi vítima de abuso sexual.

Em “Un silence si bruyant” (Um silêncio tão barulhento), Béart chora enquanto ouve os depoimentos de outra mulher, violentada como ela, dos 10 aos 14 anos. “Não vou dar nomes, só vou dizer que não foi meu pai nem minha mãe. Foi minha avó quem me tirou das garras desse incesto”, diz.

A atriz, em princípio, não queria aparecer nas telas, mas foi convencida de que um documentário a quatro vozes, três mulheres e um homem compartilhando suas histórias, era a forma mais justa. O filme passou no fim de setembro na M6, um canal de televisão de grande audiência. “Este filme, eu fiz por amor à criança que eu fui.”

Post original através de https://valor.globo.com/google/amp/eu-e/noticia/2024/01/11/pedofilia-vira-filao-editorial-tema-de-filme-peca-de-teatro-e-estimula-debate-publico.ghtml:

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