Osmar Prado estreia “O Veneno do Teatro” em BH, peça consagrada de espanhol
Osmar Prado encarna um marquês sádico na peça ‘O Veneno do Teatro’, do espanhol Rodolf Sirera | Foto: Priscila Prade/Divulgação
Osmar Prado pode matar. E não apenas. “Qualquer um de nós pode ficar irado, chutar uma porta, quebrar tudo, rolar pelo chão de chorar”. O veterano ator, de 76 anos, utiliza o exemplo para explicar a construção de sua mais nova personagem.
Em “O Veneno do Teatro”, cuja pré-estreia nacional acontece neste sábado (13), em Belo Horizonte, com sessão também no domingo (14), dentro da Mostra Cine Brasil de Teatro e Música, ele encarna um marquês sádico, que foi buscar dentro de si, auxiliado pelas informações dramatúrgicas.
“A sociedade está muito dominada por um sentimento religioso que tenta nos enquadrar num tipo de comportamento inexistente. O marquês pode ser taxado como psicopata, mas, na realidade, ele diz coisas que nos incomodam e denunciam a nossa psicopatia coletiva”.
Personagens
Não foi a primeira vez que Osmar se viu diante do desafio. Há três décadas, faturou os prêmios de melhor ator coadjuvante da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) nas categorias de teatro e televisão por papéis tão distintos como o líder nazista em “Uma Rosa para Hitler” e o ingênuo Tião Galinha da novela “Renascer”, ambos em 1994. Em 2022, o reconhecimento veio com o folclórico Velho do Rio de “Pantanal”.
Assim como o artista plástico e ativista social Eduardo Marinho, que, aos 19 anos, abandonou uma vida de classe média para morar nas ruas, a quem reputa como “uma espécie de filósofo popular”, Osmar prefere a espiritualidade à religião, e questiona a ideia de um Criador punitivo e intolerante, em contraponto ao Deus concebido pelo pensador Spinoza (1632-1677), que prega alegria e felicidade em abundância.
“Tenho em mim todas as potencialidades do marquês porque o ser humano é tão virtuoso quanto potencialmente canalha, a pessoa que se diz incapaz de praticar uma atrocidade está mentindo, depende da circunstância e da oportunidade”, assegura ele, que se vale ainda de uma dica da célebre atriz Elza Gomes (1910-1984), com quem contracenou na telenovela “Nina”, de 1977: “Quando tiver dúvidas em relação ao personagem, leia o texto e você o encontrará”.
Enredo
Concluída pelo dramaturgo espanhol Rodolf Sirera em 1978, no contexto do fim da ditadura do general Franco, que assassinou, entre milhares de outros, o poeta García Lorca (1898-1936), a peça se passa no período da pré-Revolução Francesa, que destituiu a aristocracia por meio da guilhotina, precisamente em 1784.
Na trama, com ares de “thriller psicológico e fábula moral”, na definição do próprio autor, o monarca propõe a seu interlocutor a representação da morte do filósofo Sócrates, coagido a se envenenar com cicuta por, em tese, desafiar a moral vigente, e que, na visão de Osmar, “morreu por ser autêntico”.
Segundo ele, Galileu, tema de clássico do alemão Bertolt Brecht, sofreu com o mesmo processo, desta vez por parte da Inquisição, o que comprova que “a tortura não começou agora”. “A peça fala sobre morrer com as outras pessoas, não observar, mas sentir a intensidade de suas mortes”, sublinha. “Não éramos, somos cruéis, é o que essa obra explicita”.
Atemporal
Consagrada ao longo do tempo com encenações em mais de 60 países e traduções, como português, italiano, grego, eslovaco, japonês e inglês, a montagem brasileira, conduzida pelo diretor Eduardo Figueiredo, que ainda traz Maurício Machado no elenco, optou por não determinar a época e oferecer pequenas pinceladas que remontam a uma era distante.
“A discussão trazida é atemporal e mais atual do que nunca. Todas as ditaduras são perversas e não há um país no mundo que não tenha passado por algo semelhante. Com esse texto, Sirera desabafa sobre a irracionalidade do poder absoluto, onde as ordens vêm de cima para baixo e as pessoas são obrigadas a obedecer, se não pagam com a vida. A nossa história está repleta desses momentos”, aponta Osmar, que cita o escravagismo e os golpes militares que perpassaram a trajetória sociopolítica do Brasil.
Em um local claustrofóbico, as duas personagens se encontram para um duelo que já se insinua desigual. Além do marquês, está presente um ator, aquele que “tem acesso aos espaços privilegiados do poder, mas, na hora do jantar, é dispensado para o porão”. Nesse sentido, Osmar traça um paralelo com dois filmes que exploram “a importância e desimportância da mais invejada e desprezada das profissões”: “Mephisto” (1981), de István Szabó; e “A Viagem do Capitão Tornado” (1990), de Ettore Scola.
Transformação
“Todo mundo sente desejo de atuar de vez em quando na vida real, mas a verdade é que o artista é o ‘arroz de festa’, está lá para divertir e entreter o poder, na hora das decisões importantes não é chamado”, salienta Osmar, incapaz de conter uma gargalhada amarga.
“Nós não sabemos nada das entranhas do poder e a peça esfrega isso na nossa cara”, completa ele, que recorre a uma sentença do próprio marquês sobre o que as pessoas vão assistir: “Tudo aquilo que nós não temos coragem de admitir ou aceitar em nosso dia a dia”. Interessado nessas anomalias que o teatro denuncia, o ator relembra a censura imposta à tragicomédia “Tartufo”, de Molière, em 1664, pelo déspota Luís XIV, que reinava na França.
“Nos governos reacionários, a cultura é sempre posta para fora. A arte não faz a revolução propriamente dita, mas ela é ameaçadora porque instiga. A escola é perseguida pelo mesmo motivo. O saber gera a consciência responsável pela crítica que vai propiciar a transformação, e é isso que o sistema não tolera porque ele quer se perpetuar”, analisa Osmar, que, no entanto, não tem dúvidas quanto ao caráter inevitável da mudança. “Quer queira, quer não, o sistema será transformado”.
Serviço.
O quê. Peça “O Veneno do Teatro”, com Osmar Prado
Quando. Neste sábado (13), às 21h; e domingo (14), às 19h
Onde. Cine Theatro Brasil (av. Amazonas, 315, Centro)
Quanto. De R$35 (vale-cultura) a R$80 (inteira), na bilheteria do teatro ou pelo site www.eventim.com.br
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