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Entenda de forma descomplicada o teatro experimental de um grupo pioneiro no Brasil | Eu &

Entenda de forma descomplicada o teatro experimental de um grupo pioneiro no Brasil | Eu &

Jonyjarp Pontes e Branca Temer em “Matrioshka Polifonica” (2021), peça de 2021 do Studio Stanislavski, fundado por Celina Sodré — Foto: Layra Guimarães/Divulgação

Com frequência, as expressões artísticas englobadas sob o termo “experimental” são consideradas inacessíveis, fechadas, eruditas. Entre os méritos do livro “Estrada alta: 30 anos do Studio Stanislavski” está o de desmitificar essas ideias e compartilhar com o leitor, de forma direta e descomplicada, os processos de uma companhia teatral de viés experimental.

Em atividade desde 1991, com sede no Instituto do Ator, na rua da Lapa, Rio de Janeiro, o grupo possui como foco de pesquisa a investigação sobre o trabalho do ator, cujos métodos e procedimentos são compartilhados, na forma de diálogos, nesta obra.

Depois de ocupar cargos de gestão cultural e dirigir espetáculos no circuito comercial (com atores como Beth Goulart e Vera Holtz) e em espaços alternativos como presídios, Celina Sodré, uma das primeiras mulheres do país a se consolidar numa função majoritariamente ocupada por homens, seguiu o conselho de seu mestre e fundou a sua própria companhia.

Desde que conheceu e trabalhou com o polonês Jerzy Grotowski, considerado um dos maiores encenadores de todos os tempos, Sodré passou a dedicar-se a metodologias para o desenvolvimento do trabalho de atores. Ambos estavam seguindo a pista deixada pelo ator e diretor russo Constantin Stanislavski, no início do século XX, que buscou sistematizar o trabalho de atuação.

Com discreta edição, que procura respeitar a coloquialidade das falas, a obra dá a oportunidade não apenas para iniciados, mas também admiradores da arte e do teatro em geral, vislumbrarem as entranhas desses processos. Como um dos pilares que nortearam a construção das cerca de 60 obras encenadas pelo grupo carioca está a autoexposição do ator diante do público. Nas conversas entre alguns dos atuais 20 membros da companhia e ex-integrantes, como Bruce Gomlevski e Fábio Porchat, o livro resgata histórias de trabalhos em que atores subiram escadarias de joelhos, permaneceram contritos dentro de baús ou acionaram suas mais íntimas memórias enquanto diziam o texto de suas personagens.

As tarefas físicas e psíquicas cumpridas em cena, portanto, que resultam na almejada ação psicofísica formulada por Stanislavski, são a tônica desse teatro. Numa passagem, Sodré explica que é preciso “amar o difícil”, “construir esse amor pela dificuldade”. Como resultado desse procedimento, espera-se que os atores – e por conseguinte as cenas por eles produzidas – evitem a acomodação, o clichê e a repetição do repertório que porventura já tenham conquistado.

Não é por acaso, portanto, que as costuras textuais desses espetáculos privilegiem as escolhas dos próprios atores, alçados à condição de coautores dessa escritura cênica sensorial e psíquica. Mais que histórias com começo, meio e fim, buscam-se imagens, contradições, traumas, questões fundamentais da humanidade. Shakespeare, Tchekhov, Dostoiévski, Saramago, Clarice Lispector ou cineastas como Bergman, Pasolini e Lars von Trier, além de pinturas, trilhas, dança-teatro – são os elementos constituintes dessa paisagem.

É fascinante observar, portanto, essa ênfase a despontar tanto no trabalho da companhia como da própria encenação ao longo do século XX. No campo da dança, do teatro pós-dramático, da performance, o foco se desloca do texto dramático, dos sentidos evocados pelas palavras, para a presença desse corpo vivo em cena, aqui e agora, que fricciona os limites entre realidade e ficção.

Diante desses atores-criadores, cada vez mais serena e madura e menos imperativa, com mais de 40 anos de carreira, Sodré conta que vem abrindo mão de padronizar os processos para concentrar-se em seu poder de observação: “O trabalho do diretor é olhar, escutar: não é falar”.

Tal como seu mestre Grotowski, Sodré acredita que quanto mais atuar pela via não verbal mais conectada estará com esse lugar inatingível que esse teatro, sob impulso também de Antonin Artaud, se propõe tocar. Como explica no livro, a obra de arte (livro, música, pintura, espetáculo) é apenas veículo. A arte é aquilo que está para além do suporte físico, à espreita do inconsciente, do indizível, da própria vida.

Professora de teatro da Universidade Federal Fluminense, além de diretora, Sodré forma não apenas atores, mas relações humanas, como relatam inúmeros de seus pupilos. É que esse experimento teatral não existe sem uma ética correspondente. É somente através desses sucessivos pactos de horizontalidade, entre múltiplos criadores, entre palco e plateia, que algo assim, um produto ao mesmo tempo simples e refinado, se pode dar a ver.

Esse não é um livro que se propõe a historiografar cada detalhe de cada espetáculo encenado. Caberá ao público leitor reunir, associar e elaborar esse emaranhado de depoimentos, conteúdos, pensamentos, da forma que lhe apetecer. Como num cubo mágico, a cada movimento, novas cores e imagens irão se descortinar, como num salto no ar, um ato de fala que inaugura a existência de um espaço coabitado por arte e vida.

Estrada alta: 30 anos do Studio Stanislavski Celina Sodré, Daniel Schenker, Dinah de Oliveira & Henrique Gusmão (orgs.) Hucitec 240 págs., R$ 70

Post original através de valor.globo.com

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