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‘Itapuca, o musical’: craque por trás do espetáculo que estreia no Teatro Municipal de Niterói | Ana Cláudia Guimarães

‘Itapuca, o musical’: craque por trás do espetáculo que estreia no Teatro Municipal de Niterói | Ana Cláudia Guimarães

‘Itapuca, o musical’: o acadêmico José Ribamar Bessa é o consultor do espetáculo que estreia no Teatro Municipal de Niterói Divulgação

Você conhece o acadêmico José Ribamar Bessa, escritor, professor doutor especializado em História das Línguas Indígenas (aliás, um dos mais importantes do Brasil)? O craque mora aqui em Icaraí. Ele é o consultor precioso do espetáculo “Itapuca, o musical”, dirigido por Marllos Silva (criador do Prêmio Bibi Ferreira de Teatro Musical), que estreia dia 14 no Theatro Municipal de Niterói. O espetáculo (aliás, imperdível), produzido pela Scuola di Cultura, é inspirado na lenda da Pedra de Itapuca (o amor proibido de Jurema e Cauby).

Bessa, com mais de 20 livros sobre a causa indígena, fez levantamento e apontou cinco ideias falsas relacionadas à questão indígena que ainda estão presentes no imaginário da maioria dos brasileiros (leia a reportagem completa no blog). Entre elas:

  • Indígena genérico: Muitos acreditam que todos têm a mesma cultura, mas hoje vivem no Brasil mais de 300 etnias, falando 274 línguas autodeclaradas, que são reduzidas a 180 de acordo com critérios linguísticos. Cada povo tem sua língua, sua religião, sua arte, sua ciência, sua dinâmica histórica própria. Já em 1640, o padre Acuña, um jesuíta que acompanhou a expedição de descida de Pedro Teixeira, escreve que só no baixo Amazonas existiam pelo menos 150 povos, falando 150 línguas diferentes. Portanto, no território que é hoje o Brasil, eram faladas mais de 1.300 línguas. Os Tupinambá, do tronco Tupi, e os Goitaká, do tronco Macro-Jê, eram povos vizinhos no Rio de Janeiro, cujas línguas não permitiam uma comunicação entre eles.
  • Cultura atrasada: Os povos indígenas produziram saberes, ciências, arte, literatura, poesia, música, religião. Suas culturas não são atrasadas como ainda pensa muita gente ignorante. As línguas indígenas foram consideradas pelo colonizador como línguas “inferiores”, “atrasadas”. Ora, os lingüistas sustentam que qualquer língua é capaz de expressar ideia, pensamento, sentimento e que não existe uma língua melhor que a outra. As religiões indígenas foram consideradas pelo catolicismo, no passado, como um conjunto de superstições, o que é uma estupidez. Desde 1992, tenho realizado visitas em três aldeias, lá na serra da Bocaina: uma no município de Angra dos Reis e duas em Parati. Os Guarani foram considerados por alguns estudiosos como “os teólogos da América”, devido à sua religiosidade. A colheita de produtos da roça pode ser motivo para rezas e danças rituais. Nas atuais aldeias do Rio de Janeiro, a reza ou porahêi é realizada todas as noites, durante os 365 dias do ano, contando com a participação de quase toda a aldeia. Não conheço nenhum grupo dentro da população brasileira que reze mais do que os Guarani. Acho que eles rezam mais do que todos os bispos reunidos numa assembleia geral da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Os Guarani Mbyá mantêm fidelidade à religião tradicional, resistindo às investidas de grupos evangélicos e de outras religiões. Os diferentes povos indígenas produziram uma literatura sofisticada, que foi menosprezada porque as línguas indígenas eram ágrafas, não possuíam escrita alfabética; e essa literatura foi passada de geração em geração através da tradição oral. As várias formas de poesia indígena não são consideradas como parte da história da literatura nacional, não são ensinadas nas escolas.
  • Ex-indígenas: enfiaram na cabeça dos brasileiros como deve ser o índio: nu ou de tanga, no meio da floresta, de arco e flecha, tal como foi descrito por Pero Vaz de Caminha. Quando o índio não se enquadra nessa imagem, vem a reação: “Ah! Não é mais índio”. O papo preconceituoso afirma: “esses aí não são mais índios, já estão de calça e camisa, usando óculos e relógios e falando português, não são índios”. Criaram uma nova categoria, desconhecida pela etnologia: os ex-índios.
  • Pertecem ao passado: Os índios, é verdade, estão encravados no nosso passado, mas integram o Brasil de hoje, e não é possível a gente imaginar o Brasil no futuro sem a riqueza das culturas indígenas. Se isto por acaso ocorresse, o país ficaria muito pobre, e muito feio, igual ao bairro Amarelo, um grande conjunto habitacional localizado em Hellesdorf, no norte da ex-Berlim Oriental, na Alemanha. Em 1985, o Governo alemão construiu um conjunto habitacional tipo BNH, em Berlim. Eram blocos de 5 a 6 andares, uns caixotões de concreto pré-fabricados, com uma fachada pintada de um amarelo duvidoso diarréia. Cerca de dez mil pessoas de baixa classe média moravam lá, em 3.200 apartamentos. Os moradores reclamavam porque achavam o lugar horrível. Quando caiu o muro de Berlim, em 1989, a cidade passou por um processo de reforma urbana. O Instituto de Urbanismo de Berlim colocou 50 milhões de dólares para dar uma melhorada no bairro. Consultaram os moradores: “a gente quer mudar o bairro de vocês, mas queremos saber com que cara vocês querem que ele fique”. Os moradores discutiram e concluíram: “nós queremos que nosso bairro tenha a cara da América Latina que é bonita e alegre”. Foi feita a licitação e se apresentaram mais de 50 escritórios de arquitetura da América Latina. Ganhou um escritório brasileiro de São Paulo. Aí os arquitetos foram lá, conversar com os moradores e eles pediram: “nós queremos que sejam colocados azulejos com arte indígena”. Eles queriam arte indígena contemporânea. Em 1998, essas estampas, transformadas em azulejos, foram inauguradas nas fachadas dos blocos do Bairro Amarelo, tornando-o mais belo, habitável. A aldeia Bodoquena ganhou, por esse trabalho civilizatório, 20 mil marcos alemães e mais passagens e estadias das índias, artistas Kadiweu, que estiveram presentes na festa de inauguração. Hoje, no Brasil, existem 1.693.535 pessoas indígenas (IBGE Censo 2022) pertencentes a 305 etnias, quase todos eles produzindo artes gráficas.
  • Identidade: “o brasileiro não é índio. O brasileiro não considera a existência do indígena na formação de sua identidade. Há 500 anos não existia no planeta terra um povo denominado brasileiro. Esse povo é novo, foi formado nos últimos cinco séculos com a contribuição de três grandes matrizes: europeias, representadas basicamente pelos portugueses, mas também pelos espanhóis, italianos, alemães, poloneses, etc, além das matrizes africanas, da qual participaram diferentes povos como os sudaneses, yorubás, nagôs, gegês, ewes, haussá, bantos e tantos outros. Finalmente, as matrizes indígenas, formadas por povos de variadas famílias linguísticas como o tupi, o karib, o aruak, o jê, o tukano e muitos outros. Depois, as migrações de outros povos como os japoneses, os sírio-libaneses, os turcos. No entanto, como os europeus dominaram política e militarmente os demais povos, a tendência do brasileiro é se identificar apenas com o vencedor – a matriz europeia. O indígena não foi “’eliminado” nem “assimilado”. No entanto, hoje, além desses povos viverem falando suas línguas, mantendo organizações sócio-politicas próprias, o índígena permanece vivo dentro de cada um de nós. Olha a Vera Fischer, loura, de olhos azuis, filha de uma migração recente. Não seria exagerado afirmar que a Vera Fischer é tão indígena quando uma caboca vendedora de tacacá e é tão negona quanto uma passista da escola de samba e isso porque a indianidade e a negritude não é marcada pela cor da pele, pelo tipo de cabelo, pela forma do nariz. Não é uma questão genética, é uma questão cultural, histórica. Na hora em que aquele descendente de um alemão lá de Santa Catarina, louro e do olho azul, começar a rir – como é que ele vai rir? Ele vai sentir medo de quê? Quando fala uma variedade regional do português, de onde veio essa forma de falar? É aí que afloram as heranças culturais, as marcas indígenas e negras, ao lado das europeias.

Post original através de oglobo.globo.com

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