Deborah Colker faz versão de ‘A sagração da primavera’, de Stravinsky, com histórias dos povos originários brasileiros | Teatro
Recentemente, um amigo inglês perguntou a Deborah Colker como ela estava se sentindo. “Muito feliz” foi a resposta. Ao GLOBO, ela se disse “leve”.
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As expressões surpreendem vindas de quem está prestes a pôr em cena (no Theatro Municipal do Rio, de 21 a 24 de março) um dos mais pesados desafios assumidos por qualquer coreógrafo: uma versão para “A sagração da primavera”.
A composição de Igor Stravinsky nasceu para ser dançada. A companhia Ballets Russes, do empresário Sergei Diaghilev, estreou a coreografia de Vaslav Nijinsky em 29 de maio de 1913, em Paris. As novidades na música e na dança dividiram a plateia entre vaias e aplausos, chegando a haver uns sopapos entre as partes. A criação de Stravinsky começou ali a se estabelecer como um ponto de ruptura na história da música.
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Se o compositor buscou inspiração em mitos ancestrais da Rússia, Deborah se valeu de histórias dos povos originários brasileiros.
— Stravinsky rompeu com o ritmo, com a música, misturou coisas que não se misturavam, abriu caminhos inusitados. Achei que também deveria fazer isso, ter o impulso de romper a própria obra que eu escolhi. Mas não com leviandade. Segui o caminho dele, que estava no erudito e foi ao primitivo, aos povos ancestrais — conta ela, pianista de formação.
Os 30 anos da companhia
A leveza que diz estar sentindo tem a ver com a liberdade que se deu para fazer a sua própria “Sagração” — e com este título, sem “da primavera”, para ficar ainda mais livre do peso de estar encenando algo considerado clássico, recriado por coreógrafos como a alemã Pina Bausch.
Com sua companhia de dança, que está completando 30 anos, Deborah vem de dois trabalhos de tons sombrios: “Cão sem plumas” (2017), que trata da miséria a partir do poema de João Cabral de Melo Neto; e “Cura” (2021), sobre como viver com doenças ou transtornos incuráveis.
— Agora eu quero sagrar. Sagrar passos evolutivos, a floresta, a música, a dança — avisa ela, que usa em cena 170 bambus de quatro metros de altura, alusão às florestas.
Ela se sentiu livre, inclusive, para não fazer uma cena do sacrifício, a mais célebre do roteiro de Stravinsky. Na história, sacrifica-se uma virgem para entregar aos deuses em troca da fertilidade da terra.
— O sacrifício é a própria evolução. Não tem como o ser humano evoluir, adquirir sabedoria, sensibilidade sem sacrificar coisas — afirma.
A peça de Stravinsky tem cerca de 40 minutos de duração, enquanto o espetáculo de Deborah tem 69 minutos. À obra do compositor russo foram acrescidos ritmos brasileiros, sobretudo sons de povos indígenas.
— A música clássica e a ancestral têm o mesmo peso. Então, precisa existir um tempo para essa música ancestral. Há momentos encabeçados pelo Stravinsky e outros encabeçados pela música indígena — explica ela.
Boi-bumbá e Karajan
Coube ao diretor musical Alexandre Elias fazer a trabalhosa costura sonora. A versão de “A sagração da primavera” que usou é a da Filarmônica de Berlim, regida por Herbert von Karajan. As origens dos outros sons são diversas, como elementos eletrônicos, boi-bumbá, coco e vozes gravadas por Deborah em 2022 no Kuarup, a cerimônia que acontece anualmente no Território Indígena do Xingu.
— É um processo de colagem, mas a linguagem do Stravinsky na “Sagração da primavera” também é fragmentada. Há momentos em que a sonoridade é extremamente primitiva e outros em que ela é claramente clássica — destaca Elias. — Stravinsky não é naturalista. Depois da “Sagração”, na minha opinião, a música erudita ficou perdida. Para onde se vai depois daquilo? Um compositor contemporâneo usa Stravinsky como referência. Miles Davis usava. Até hoje Stravinsky é revolucionário.
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Deborah não quis transformar isso num tabu. Inseriu ideias como a da “queda do céu”, imagem do povo ianomâmi divulgada no livro homônimo escrito por Davi Kopenawa e Bruce Albert. Depois dela, porém, vem a ascensão do céu, que acontece ao som de samba.
— Tem o sentido de sagrar um novo mundo, nova alegria, nova vida, novo respeito, novo samba — explica.
Há uma espécie de carnavalização da obra de Stravinsky. Ou, para falar em termos do Modernismo, há antropofagia.
— A gente pegou o Stravinsky, mastigou, chupou o caroço e veio um samba, veio música indígena — afirma Deborah.
Parceria com Nilton Bonder
Veio um roteiro que é cronológico, mas nem tanto. Começa com a avó do mundo, figura presente na tradição de alguns povos indígenas. Depois vêm, por exemplo, as bactérias, os seres rastejantes que são coletores, os quadrúpedes caçadores e a descoberta do fogo, narrada pelo cineasta Takumã Kuikuro, que conta uma lenda do povo kuikuro.
Vem também Abraão, num barco, não como andarilho. E depois, em vez de estar na origem de tudo, surge uma Eva negra, sugestão do rabino Nilton Bonder, dramaturgo do espetáculo ao lado de Deborah.
— Eva subverte uma ordem, ela é transgressora. Evoluiu, passou a ter livre-arbítrio — explica a coreógrafa.
Ela se diz feliz também por estar fazendo uma encenação muito colorida, na luz de Beto Bruel e nos figurinos de Claudia Kopke. A liberdade passa pela cenografia de Gringo Cardia e, especialmente, pelo trabalho de Alexandre Elias. Ele se diz um apaixonado pela “Sagração da primavera” desde a adolescência, quando foi estudar orquestração com Ian Guest.
— Tive um professor húngaro que estudou música na Hungria, jazz nos Estados Unidos e que dava aula de música brasileira no Brasil. Então, não havia qualquer preconceito. Nem passou pela minha cabeça se eu poderia ou não mexer na “Sagração” — diz.
Óperas e patrimônio
Para celebrar o 30º aniversário, a Companhia de Dança Deborah Colker foi declarada, em 17 de janeiro, patrimônio imaterial do estado pela Assembleia Legislativa.
A coreógrafa se diz orgulhosa, está confiante em “Sagração”, mas dedicará boa parte de 2024 a um projeto bem diferente. Ela estreará em 15 de outubro, no Metropolitan Opera House, em Nova York, a ópera “Ainadamar”, música do argentino Osvaldo Golijov. Em maio, Deborah passará por lá para escolher os bailarinos flamencos e em 4 de setembro começará os ensaios.
Antes de chegar ao templo da ópera, o espetáculo passou por outras cidades nos Estados Unidos e no Reino Unido, recebendo várias críticas positivas. Depois de Nova York, chegará a Los Angeles.
E o Metropolitan já acertou que, em 2026, ela encenará “Frida” — originalmente intitulada “O último sonho de Frida e Diego” —, ópera sobre os pintores mexicanos Frida Kahlo e Diego Rivera com música da americana Gabriela Lena Frank.
Post original através de oglobo.globo.com
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