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Rafaela Azevedo usa palhaçaria para se vingar do machismo e violências contra as mulheres | Cultura

Rafaela Azevedo usa palhaçaria para se vingar do machismo e violências contra as mulheres | Cultura

“Isso aqui dá uma voz. É só ter um desse, todo mundo te escuta”, diz Fran ao “testar” seu dildo de borracha de 37 centímetros, preso em meio às pernas, que usa como microfone no teatro. A personagem criada por Rafaela Azevedo nasceu há dez anos no Grupo Off-Sina, no Rio de Janeiro, ganhou seu primeiro espetáculo solo em 2017 e viralizou no Instagram em 2020. Vestida de gorila, ela expõe no palco suas vulnerabilidades – entre elas, a violência sexual que sofreu em um consultório médico e que dá origem ao espetáculo King Kong Fran. O texto foi visto por mais de 12 mil pessoas e tem sessões esgotadas por onde passa.

Rafaela Azevedo usa a figura da “mulher gorila” para abordar opressões de gênero em King Kong Fran — Foto: Divulgação

“Como quase toda mulher, pensava com a cabeça de um homem e me culpava. Depois de dez anos do episódio em que fui dopada e estuprada, isso mudou”, diz. Ao longo de anos, ela lidou com problemas nos ovários, não menstruava e vivia um relacionamento abusivo, o que fez com que não conseguisse denunciar o crime. “Ele me colocava como puta, e eu acreditava que merecia o que tinha vivido e passei a lidar com isso sozinha. Sabia que se contasse ele ia me culpar, dizer que foi traição, que eu seduzi o médico… Passei a me automutilar e não conseguia transar”, conta Rafaela, que encontrou em Fran uma salvação.

Enquanto cuidava da mente, continuou a frequentar os grupos de teatro de que fazia parte, e foi assim que surgiu a personagem. Em uma oficina com Karla Concá – uma das precursoras da palhaçaria no país, com seu As Marias da Graça, primeiro grupo de mulheres palhaças do Brasil, fundado nos anos 1990 –, Rafaela menstruou em cena. “Fazia tempo que não menstruava, vivia com dor. A Fran surge desse lugar inconsciente e me salva”, diz.

Nos primeiros números da Fran, a protagonista aparecia seminua e sedutora, algemava homens no palco e “virava o jogo com violência”. Em King Kong Fran, ela expõe o machismo e fala de distinção de gênero ao provocar interações com homens da plateia, numa fusão das linguagens de teatro e circo. “Você se incomodaria de abrir as pernas? Quero checar um negócio: a sua mala está marcando?”, pergunta Fran a um dos homens sentado na primeira fila. “Está marcando ou não? Preciso saber… Não está?! Que absurdo! Por que você saiu de casa se não planejava mostrar o que interessa?!”

Rafaela leva à cena o que processou sobre abusos sexuais. “Virou algo terapêutico para mim.” Ela usa a palhaçaria para lidar com suas dores, mas decidiu ser palhaça por causa das vulnerabilidades da mãe neurodivergente. “Como diz a [Marina] Abramović: ‘Quanto pior a infância, melhor o artista’”, diz ela, que aos 13 anos já sabia que queria ser atriz profissional. Todos os dias saía de Honório Gurgel, na Zona Norte do Rio, onde nasceu, e ia para o centro da cidade para ter aulas de teatro.

Mas era em casa que estava sua maior referência: “Quando minha mãe morreu, foi diagnosticada com esquizofrenia e borderline. Ela performava muito bem a neurose, mas eu achava que era normal, era meu universo. Quando comecei a conhecer a mãe dos meus amigos, pensei: ‘Cara, não é normal’. Eles me falavam: ‘Minha mãe é louca’, e eu pensava: ‘Mas a minha…’ [risos]”.

A jovem Rafaela endeusava a mãe que vivia no limiar entre a realidade e a imaginação. “Penso que se ela tivesse tido alguma oportunidade, seria uma grande artista”, reflete. “Por exemplo, se gostasse de um galã da novela, ela fingia que ele era seu namorado. A gente vivia brincando com as histórias dela.”

Minha força cômica está em tudo o que é fora do padrão”
— Rafaela Azevedo
King Kong Fran — Foto: Divulgação

Rafaela é a única artista da família. Ingressou no curso de teatro profissional aos 16 anos, na Casa das Artes de Laranjeiras. Estudava à noite e, durante o dia, trabalhava como assistente da diretoria no Museu Nacional de Belas Artes. A jornada durou três anos e meio. “Virei palhaça para poder lidar com minha mãe. Ser palhaça é conseguir inverter o paradigma do que é inadequado, e o que é errado vira o foco. Quando assistimos a uma palhaça, estamos vendo uma pessoa errar. Sempre vi valor no inadequado”, conta. Diferentemente do comediante, o palhaço é autorreferente. “Coloco uma lente de aumento em tudo o que é fora do padrão e não aceito socialmente e nisso está a minha força cômica.”

Para King Kong Fran chegar ao teatro, a carioca fez um financiamento coletivo e arrecadou R$ 30 mil. A peça custou R$ 70 mil, mas, na primeira bilheteria, conseguiu o valor cheio. Na plateia estava Letrux, diretora musical do espetáculo. Quem assina a direção e dramaturgia ao lado de Rafaela é Pedro Brício. “O Pedro, um homem branco, estava fascinado pela história, mas ele não é meu público-alvo. Aí vi na plateia a Letrux chorando muito – ela e outras mulheres – e comecei a entender a potência da Fran”, diz.

É somente ao final da peça que Rafaela cita que a obra nasceu de um caso de estupro sofrido por ela. Mas, no início, a atriz não quis abrir essa parte da sua história para o público. “O Pedro me convenceu de que falar sobre isso era mostrar a profundidade da Fran. Eu pensava que, se contasse, ela deixaria de ser minha super-heroína, ia perder a graça. Fiz a estreia sem ter certeza se falaria. A última cena estava aberta e, com uma plateia emocionada, decidi me abrir.”

Letrux conheceu Rafaela durante a pandemia, quando fez uma oficina on-line de palhaçaria com a atriz. “A Rafa falava de mim nas oficinas, que eu era uma palhaça, então foi curioso estar ali, num ambiente familiar, mas ao mesmo tempo desafiador”, lembra a cantora. Ela lembra também de quando, no primeiro ensaio aberto, levantou da cadeira aos prantos para abraçar Rafaela. “Num gesto meio doido até. Foi muito forte. Rafa é genial e achou um lugar único pra falar sobre algo tão doloroso. Amo tragicomédia, não quero só rir ou só chorar, quero o passeio, e ela o faz como ninguém”, diz.

Com apresentações no Rio e em São Paulo em dezembro e janeiro, o espetáculo é, conta Rafaela, uma das cinco apresentações mais vistas no Brasil, mas segue sem patrocínio. “Sou eu por mim. Agora, ser uma ‘mulher foda’ é estar seminua falando putaria. Faço o oposto disso, e quem coloca o dinheiro nesse mercado são homens velhos”, desabafa.

Rafaela comemora as indicações ao Prêmio do Humor 2023 nas categorias Melhor Performance, Melhor Espetáculo e Melhor Direção, mas lamenta ter ficado fora de outras grandes premiações. “Sei que o que fiz há muito tempo não se vê no teatro. A última vez foi com Minha Mãe é uma Peça, do Paulo Gustavo. Eu esperava ao menos uma categoria especial.” São fatos que a frustram, mas não desanimam. Com dez anos de carreira, Rafaela sabe que precisa expandir – mesmo que sozinha. “Tenho um projeto de videocast e estou tentando vendê-lo desde a estreia. No teatro cabem 2 mil pessoas, mas na internet isso pode chegar a 1 milhão em dez minutos”, diz ela, que passou a integrar o grupo de humor Porta dos Fundos neste ano.

King Kong Fran — Foto: Divulgação

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Nos palcos e nas redes, Fran recebe aplausos, gargalhadas e milhares de likes, mas também ataques. “Já rolou de homem levantar e ir embora no meio da peça. Uma vez, em Campinas, um senhor saiu gritando: ‘Quero meus R$ 80 de volta’. Mas foi ótimo, eu até pensei em contratar um ator para fazer isso sempre”, conta aos risos.

Sua primeira conta no Instagram foi banida pelo excesso de denúncias e dircursos de ódio. Nesses momentos, ela se apega à arte: “A Fran sou eu, só que brincando com todos os meus medos. O humor só acontece quando tem algum erro, então, um problema acaba sendo um presente e eu resolvo com ela. E, quando mulheres me mandam mensagens sobre como Fran as transforma, sei que não posso parar”.

A palhaça já recebeu retornos de mulheres que saíram de relacionamentos abusivos após assistirem à peça e de outras que passaram a entender que sofreram assédio ou abuso sexual. “O sucesso do espetáculo é a identificação. Converso com as mulheres e todas que veem a peça saem dizendo: ‘É a minha história’.”

Onde assistir

Rio de Janeiro
Teatro Riachuelo
Rua do Passeio, 40 – Rio de Janeiro – RJ
Dias 5, 6 e 7 de janeiro de 2024 – sexta e sábado às 20h e domingo às 18h.
Ingressos: R$19,50 a R$100.
Link vendas aqui

São Paulo
Teatro MorumbiShopping
Endereço: Av. Roque Petroni Júnior, 1089, Jardim das Acacias – São Paulo – SP
De 15 de Janeiro a 6 de fevereiro de 2024 – Segundas e terças, às 21h.
Duração: 70 minutos.
Classificação: 18 anos
Ingressos: R$80 e R$40.
Link vendas aqui

Post original através de https://revistamarieclaire.globo.com/google/amp/cultura/noticia/2023/12/rafaela-azevedo-palhacaria-king-kong-fran-teatro-porta-dos-fundos-machismo-abuso-violencia.ghtml:

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