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‘Dämon’, ou como dessacralizar a cena para explodir os limites do teatro

‘Dämon’, ou como dessacralizar a cena para explodir os limites do teatro

Iconoclasta, Angélica Lidell, artista que frequenta a cena principal do Festival de Avignon desde 2010, quando estreou os impactantes La casa de la fuerza e El año de Ricardo, não mede esforços para ressignificar o espaço – a Cour D’Honneur, a vitrine principal do evento criado em 1947 por Jean Vilar; o contexto – a imponência da presença ilustre de “ministros franceses” e autoridades -, e o tempo – bailando entre as memórias do cineasta sueco Ingmar Bergman, a encenação de seu funeral, escrita pelo próprio, sua história pessoal como encenadora e os “massacres” perpetrados em uma Avignon medieval.

Mas o primeiro alvo de sua homilia furiosa é certeiro, num gesto metalinguístico que apimenta a escritura da peça: os críticos de teatro… Apoiada pelos cadernos de Ingmar Bergman, onde o cineasta fazia anotações cáusticas sobre os jornalistas que o desprezavam ou humilhavam, Lidell projeta nos muros do Palácio dos Papas o nome de diversos críticos conhecidos do grand monde francês, para espanto, risadas e aplausos do público presente, numa vingança inédita e insuspeitada.

Assim desfilam pelas pedras seculares os nomes e veículos de cada crítico desafiado, enquanto a performer lê, em seu próprio caderno, trechos desabonadores de textos publicados na grande imprensa francesa. Ao final, a pergunta, dirigida ao jornalista em questão, no microfone: “Fulano, onde está você agora?”. Gargalhadas chovem na plateia.

Derrubando tabus

Mas muito mais que uma punch line humorística, Angélica Lidell instaura desde o primeiro momento as bases para um dispositivo cênico extremamente coerente com sua linguagem teatral, cujas sementes já eram perceptíveis em “Liebestod”, peça apresentada no Festival de Avignon em 2021.

Tornando a plateia cúmplice de sua vingança, ela explode a cena para falar não só de sua própria história, angústias e medos, mas vira o espelho para a plateia, num gesto que consolida esse pacto e nos coloca face a face com as nossas próprias inseguranças, nossa “submissão suicida”. Tudo em “Dämon” é um convite para se rebelar, para não se calar, porque “hoje você vai onde deseja, mas, em breve, levarão você onde você não quer ir”, numa alusão à velhice, à relação de poder com cuidadores, as instituições, o Estado.



Post original através de noticias.uol.com.br

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