Um passo a passo para entender ‘Sagração’, balé de Debora Colker que une Stravinsky a povos originários
Quando estreou em Paris, em 1913, “A sagração da primavera”, composta por Igor Stravinsky (1882-1971) e apresentada com coreografia de Vaslav Nijinsky pela companhia Ballets Russes, se tornou um divisor de águas no horizonte da música e da dança. Entre vaias e aplausos, a plateia viu bailarinos caracterizados com vestes típicas do folclore russo encenarem uma celebração pagã que culminava com o sacrifício de uma virgem ao deus da primavera, em troca da fertilidade da terra.
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Mais de um século depois, a emblemática obra ganha livre adaptação da Companhia de Dança Deborah Colker — que celebra 30 anos de estrada e o reconhecimento como patrimônio imaterial do estado do Rio de Janeiro. Após esgotar sessões de estreia no Theatro Municipal, em março, “Sagração” chega nesta sexta-feira (19) à Cidade das Artes para temporada de quatro semanas.
Em um único ato de 70 minutos, dividido em 14 cenas, o balé costura uma reflexão sobre a vida no planeta. Enquanto o compositor russo se inspirou em mitos ancestrais de sua terra, Deborah Colker buscou a cosmovisão dos povos originários brasileiros como guia, entrelaçada a mitos judaico-cristãos e ao evolucionismo de Darwin.
— Eu precisava trazer para minha história, meu povo. Alterar “A sagração da primavera” é como mexer na perfeição, eu sabia que exigia uma maturidade. Mas, para seguir um artista que rompeu tanto com a ordem, era necessário romper também — conta a coreógrafa e diretora, que, ao lado do rabino Nilton Bonder, desenvolveu a dramaturgia sem a cena que encerra a obra original. — Cada passo na evolução já é um sacrifício. Eu queria celebrar o caminho humano em um momento em que as pessoas se perguntam: “Que mundo é esse? Onde a gente chegou?”.
A sonoridade das florestas e ritmos brasileiros, como boi-bumbá, coco e samba, também foram incorporados ao espetáculo pelo diretor musical Alexandre Elias, que trabalhou com instrumentos como flauta de madeira, caxixi e tambores, além de elementos eletrônicos e vozes gravadas em uma cerimônia no Xingu.
— Stravinsky levou tudo ao limite. Ele foi fundo na música primitiva, que se deixa levar pelo impulso da dança, sem compromisso com as estruturas de tempo e compasso. Os acordes se batem, como água e óleo. Buscamos as interseções com a nossa música originária — explica Elias.— O que chega ao público é a força que emana dessa massa sonora.
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Em cena, se destacam ainda 170 bambus com quatro metros de comprimento, que, além de compor o cenário, fazem as vezes de armas, canoas e florestas ao serem manipulados pelos 15 bailarinos. A direção de arte e a cenografia são de Gringo Cardia, parceiro da companhia desde sua criação. Os figurinos ficam a cargo de Claudia Kopke — que assina os anteriores “Cão sem plumas” (2017) e “Cura” (2021) —, e iluminação, de Beto Bruel.
Para desvendar a montagem, confira a seguir uma linha do tempo do espetáculo contada pela própria diretora.
Veja fotos do espetáculo ‘Sagração’, da Cia. Deborah Colker, que reestreia no Rio
Inspirado em obra de Igor Stravinsky, balé explora histórias dos povos originários brasileiros para reafirmar autoridade da natureza
O balé se inicia com a avó do mundo, que, segundo povos originários, traz a luz para a escuridão. “A avó, através de seu pensamento, representado com um bastão iluminado, começa a desenhar o mundo. É quase uma feiticeira, é uma entidade da criação”.
De as bactérias a quadrúpedes, formas de vida que precedem o Homo sapiens entram em cena. “Foi um desafio criar uma dança que traduzisse o movimento de um corpo rastejante. Trabalhamos com joelhos, cotovelos e peito no chão. É a parte que mais cansa os bailarinos. O figurino é colado ao corpo, quase como uma pele laranja. Para acompanhar, a luz é próxima ao solo, como se o céu fosse mais baixo”.
Foi em uma expedição ao Xingu que Débora conheceu a lenda do povo Kuikuro, que narra uma troca entre o “povo do chão”, que dominava a caça, e o Urubu Rei, dono do fogo. No espetáculo, a história é contada pela voz do cineasta Takumã Kuikuro. “Não tive de medo de fazer uma fábula e aplicar isso também ao figurino, mas com cuidado para não infantilizar ou carnavalizar. O caçador aparece praticamente nu, enquanto o animal caçado tem cabeça e costas maiores. Já o Urubu Rei ganha uma plumagem, e o fogo brinca com a cor vermelha”.
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O personagem bíblico Abraão surge em uma canoa, navegando, e as luzes ganham tons azulados. “Após uma mensagem de Deus, ele sai em busca de seu caminho. Faz parte do nosso processo evolutivo cognitivo”.
A mítica figura da serpente — vestida com pedaços de renda que lembram escamas —, faz o parto de uma Eva negra, que inaugura um novo caminho da humanidade. “O parto simboliza as transformações para uma nova espécie. Eva é corajosa: desobedece, come a maçã e dá um passo evolutivo. Ela passa a se diferenciar dos outros animais, e esse corpo vai se transformando. Primeiro, ela traz uma roupa vermelha e, ao se reconhecer dentro do coletivo humano, muda de figurino. Ela já não é mais importante. Agora, é como todo mundo”.
Com o desenvolvimento da agricultura, se intensificam as noções de propriedade e as disputas por liderança, que culminam com a “queda do céu”, imagem do povo ianomâmi que alude ao mito do fim da humanidade. “Em uma cena silenciosa, a avó volta para avisar que as brigas e o sacrifício da natureza anteveem algo terrível, até que tudo desaba. Ela atua como aquele lado da gente que entende que o mundo tem várias forças, e que temos que respeitá-las”.
Diante da destruição, a avó do mundo é embalada em uma rede indígena, representando a possibilidade do recomeço guiado por uma relação mais sábia com a natureza, e suspensa a mais de três metros de altura, ao som de samba. “A gente amarra todos os bambus, que estão caóticos no chão, e os prendemos a cinco cabos com motores para suspender esse céu caído. É uma missão difícil e coletiva. É simbólico: ninguém vai resolver isso sozinho”.
Onde: Cidade das Artes, Barra. Quando: Qui e sex, às 21h. Sáb, às 19h. Dom, às 18h. Estreia sexta (19). Até 10 de agosto. Quanto: R$ 39,60 (galeria e camarote promocional); R$ 120 (frisa lateral e camarote); R$ 160 (plateia). Classificação: 10 anos. Assinantes O Globo têm 40% de desconto na compra do ingresso.
Post original através de oglobo.globo.com
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